“Quem sou eu”?
Uma jovem e brilhante escritora latino-americana tornou-se recentemente uma celebridade no mundo literário por suas ideias audazes e mensagem não ortodoxa. Em uma entrevista, ela critica a monogamia e até mesmo a ideia romântica de casal. Em alguns pontos, parece indicar que o desejo é o eixo que deve ser seguido nas relações. Em certo momento, a entrevistadora pergunta: “Também há mais pessoas que não querem ser rotuladas em termos de identidade, isso também acontece no seu círculo?”. A escritora responde: “Talvez agora, como estou fora do meu país, tenha menos problemas de identidade. E ao mesmo tempo fico pensando isso o tempo todo, quem sou eu? É estranho, tem muito a ver com o espírito da época.”[1]
Isso tudo poderia ser rejeitado por cristãos como mais uma expressão de um programa mundano de combate à família e ao projeto de Deus. Certamente pode ser classificado assim. Mas eu gostaria de convidar você a resistir à tentação de “virar a página”. Repare que, em meio às palavras dessa jovem e brilhante escritora, existe um grito por socorro, ainda que ela mesma não se dê conta. Logo após fazer afirmações tão categóricas como denunciar a monogamia como um sistema de dominação da mulher e afirmar que o poliamor e os relacionamentos abertos (leia-se “sem compromisso ou fidelidade”) estão ultrapassados, ela afirma que fica “pensando isso o tempo todo, quem sou eu?”. Ou seja, ela tem uma verdadeira e profunda crise de identidade, mas sente que pode ensinar sobre relações humanas.
Dois pensamentos vêm à minha mente. O primeiro é a passagem de alerta de Paulo a Timóteo com respeito a falsos mestres que estavam prejudicando a igreja. Em 1Timóteo 1.7, lemos: “Pretendendo passar por mestres da lei, não compreendendo, porém, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais falam com tanta ousadia”. Essa escritora não compreende nem as coisas sobre as quais faz afirmações tão categóricas. Ao mesmo tempo, não sejamos rápidos demais em acusá-la. Uma vez mais eu vejo uma mente em sincera busca por respostas. Na falta de respostas em que possa confiar, ela usa de sua imaginação e raciocínio para completar as peças que faltam em seu quebra cabeça existencial. Infelizmente, ao não se conectar e basear suas conclusões no Criador, toda sua análise fica a vagar nas águas turbulentas de suas experiências e das interpretações que ela adota como válidas.
Mas um outro pensamento tem me levado a refletir sobre esse e outros temas, tais como relações humanas, ética, justiça, sexualidade e enfim, a vida. Esse é o tema revelado na pergunta dessa jovem – “Quem sou eu?” – e seu reconhecimento de que esse é o espírito da época. Vivemos um período de crescente secularismo. A essência do secularismo não é apenas negar a existência de Deus, mas viver ativamente como se ele não existisse. Repare que não é a mesma coisa, muito embora possa parecer. Um ateu vive como se Deus não existisse, pois é isso que crê. Um secularizado se opõe e mesmo se revolta com a ideia de um Deus pessoal. Conforme o dr. Arthur Lupion: “O secularismo não tem nenhum problema com nova era, com espiritismo ou com qualquer crença inclusiva. O secularismo tem como inimigo o cristianismo, por ser uma fé exclusiva”.
A essência do secularismo não é apenas negar a existência de Deus, mas viver ativamente como se ele não existisse.
No momento em que o homem (ou, nesse caso, mulher) secularizado rejeita a ideia de um referencial absoluto, um Deus que criou o ser humano com um propósito e um projeto, ele cai fatalmente em um “vale tudo” moral e mesmo ético. Fica então refém de experiências, sentimentos e interpretações baseadas ou no que outros dizem, ou naquilo que ele mesmo afirma. Em outras palavras, é a versão “requentada” da famosa frase de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”.
Nossa fé cristã se baseia não só na existência de um Deus soberano e criador, mas também no reconhecimento de que esse Deus deseja e age para manter um relacionamento conosco. Ao invés de afirmar minha identidade com base naquilo que pessoas afirmam ou fazem comigo, ou naquilo que espero ser (o que leva a pessoa a um contínuo questionamento, como a autora mencionada acima), nós afirmamos que somos quem Deus diz que somos.
Ao invés de afirmar minha identidade com base naquilo que pessoas afirmam ou fazem comigo, ou naquilo que espero ser, nós afirmamos que somos quem Deus diz que somos.
Fomos criados à sua imagem e semelhança (Gênesis 1.27)
Fomos criados para o louvor de sua glória (Efésios 1.11)
Fomos criados para um relacionamento íntimo com ele (João 17.3)
Fomos criados para relacionamentos amorosos como expressão de quem ele é (1João 4.7)
Essa é uma lista brevíssima sobre o que podemos afirmar sobre nossa identidade uma vez que permitirmos que Cristo assuma o trono de nossas vidas. Minha oração é que, quando formos desafiados a definir quem somos (e isso acontece o tempo todo), a nossa resposta seja profundamente embasada naquele que nos amou e nos deu seu próprio Filho para que que pudéssemos manter comunhão com ele.
Nota
- Diana Massis, “‘Com as relações abertas, a infidelidade perdeu peso, pois não é mais tão importante’, defende escritora chilena”, BBC News, 25 set. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-58540269.