Mantendo um ritmo devocional em um mundo alucinado
Não sei se você já viu ou mesmo participou de uma corrida de grande escala. Como marido e apoiador, além de fã incondicional, de uma corredora, já participei de duas maratonas e algumas corridas menores. A organização é, em geral, surpreendente. São centenas de voluntários, policiais e contratados para que um evento de grande porte seja realizado com profissionalismo e harmonia. No entanto, há uma tensão que mesmo o mais organizado evento não consegue manter sob controle. É a explosão da largada.
Em algumas corridas você chega a ter 10 mil participantes. Os tempos em que era importante largar na frente já são parte da história. Hoje todo competidor recebe um chip que marca o momento exato em que cruzou a linha de largada e a linha de chegada. Assim mesmo que você largue minutos após o início, seu tempo de corrida será registrado sem nenhum atraso. No entanto, a aglomeração e o empurra-empurra da largada ainda é uma constante. Por que atletas se aglomeram, se apertam e se empurram, quando sabem que o tempo registrado será o chip e não o da ordem de chegada? A única explicação que eu tenho é o que alguns chamam de “mentalidade de manada”. Parece que, quando é dada a largada, eu não quero ficar para trás, e, se tem alguém correndo, eu quero correr também. Se tem alguém acelerando logo na largada, eu tenho que acelerar também. Não é raro um corredor perder a prova por acelerar demais na largada. Ao invés de manter seu ritmo, deixou-se levar pela “mentalidade de manada” e impôs um ritmo que para ele ou ela era insustentável.
Durante estes meses de pandemia, muita coisa mudou em termos de ministério e de ritmo de vida. Estudos têm mostrado que as pessoas têm trabalhado um número maior de horas a partir do home office. A tradicional divisão de trabalho no escritório e lazer com amigos e família foi apagada. Hoje, vida em família e ambiente de trabalho e/ou estudo se misturaram. Horários foram flexibilizados, mas as demandas apenas se intensificaram. O resultado é uma crescente ansiedade. Pesquisadores têm identificado que a síndrome de Burnout cresce assustadoramente no Brasil e no mundo. Segundo o psiquiatra Eduardo Perin, especialista em terapia cognitivo-comportamental pelo Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo:
“A rotina de trabalho em casa fica muito diferente, porque o trabalho invade a rotina da pessoa e ela acaba trabalhando muito mais do que se estivesse na empresa, misturando o trabalho com a vida pessoal.” [1]
De que modo a “mentalidade de manada” com respeito ao trabalho afeta o nosso dia a dia? De que modo essa mentalidade afeta nosso caminhar com Deus? Talvez a pergunta mais pragmática seja: como descobrir e manter um ritmo devocional em um mundo estressado? Todos nós conhecemos a passagem em que as irmãs Marta e Maria demonstram atitudes diferentes diante de Jesus. Marta, talvez seguindo a mentalidade de manada esperada das mulheres da época, estava atarefada em servir a Jesus, enquanto Maria descobriu um ritmo muito mais saudável do ponto de vista espiritual.
Muito embora possam existir muitos elementos nessa história, neste artigo quero destacar um deles, que é o descanso sabático que está intimamente ligado ao ritmo que vivemos. Descanso não está diretamente ligado ao cansaço. Surpreso com essa afirmativa? O raciocínio é bem simples. Deus trabalhou por seis dias e descansou no sétimo dia (Gênesis 2.2-3). Sendo que Deus é todo poderoso e, portanto, não se cansa, por que ele descansou no sétimo dia?
A única razão que faz sentido é que o descanso faz parte do ritmo de vida de Deus. Não meramente para recompor as energias (não é o caso dele), mas para aproveitar, para admirar e gozar o que foi feito. Deus tem prazer em sua obra. Ele não só disse que o que havia feito era bom, mas ele se alegrou com o que havia feito. Há uma lição profundamente espiritual nesse descanso sabático. Ao descansar, estou vivendo pelo menos três realidades: (1) confiança no Deus que provê, (2) alegria no que foi feito e (3) foco naquilo que é mais importante.
-
Confiança no Deus que provê. Na lei dada a Israel, o agricultor deveria deixar a terra descansar no sétimo ano e a promessa de Deus era que ele viveria do excedente da produção do sexto ano (Levítico 25.20-22). Ao descansar, estou declarando que meu sustento vem de Deus e não somente de minhas próprias mãos.
-
Alegria no resultado do que foi feito. Muitos trabalham enlouquecidamente, buscando um objetivo sem nunca aproveitar os resultados de seu próprio trabalho. Somos chamados a aproveitar das recompensas de nosso trabalho (Eclesiastes 3.13). A mentalidade de querer permanentemente mais é um dos maiores ladrões de nossa alegria e satisfação. Afinal de contas, o quanto é o necessário?
-
Foco naquilo que é mais importante. Uma pergunta para mantermos sempre presente é se trabalhamos para viver ou se nossa vida é trabalho. Qual é a nossa prioridade? O que realmente nos motiva e nos faz nos dedicarmos? Se a resposta é o acúmulo de bens ou os resultados de nosso trabalho, seremos os mais miseráveis dos homens. Jesus define como prioridade, ou essência da vida, o conhecimento do Senhor e o gozo de sua presença (João 17.3). Ao utilizarmos o descanso, estou também reservando um tempo para manter meus olhos fixos em Jesus (Hebreus 12.2).
Minha oração é que mesmo em um mundo transtornado, mesmo diante das demandas deste período de pandemia, você e eu saibamos reservar um tempo para estar diante de Deus, um tempo de “santa improdutividade” (do ponto de vista humano). Ao descansar no Senhor, estamos investindo naquilo que é mais importante. Conforme disse Jesus a respeito de Maria: “[Ela] escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada” (Lucas 10.42).
Nota
- Hysa Conrado, “Após 1 ano de pandemia, síndrome de burnout cresce ainda mais”, R7, 28 fev. 2021. Disponível em: https://noticias.r7.com/saude/apos-1-ano-de-pandemia-sindrome-de-burnout-cresce-ainda-mais-28022021.