Graça e Mérito
Talvez a mais profunda e perversa característica humana é nossa necessidade de nos justificarmos. Desde o engano no Éden, o homem tenta sempre justificar seus erros. Acompanhe a sequência na famosa passagem de Gênesis 3.7-13:
“Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si. Quando ouviram a voz do Senhor Deus, que andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do Senhor Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus ao homem e lhe perguntou: ‘Onde estás?’ Ele respondeu: ‘Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi.’ Perguntou-lhe Deus: ‘Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?’ Então, disse o homem: ‘A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.’ Disse o Senhor Deus à mulher: ‘Que é isso que fizeste?’ Respondeu a mulher: ‘A serpente me enganou, e eu comi.’”
Repare a sequência de reações humanas a partir do pecado: (1) perceberam que estavam nus. Não é que não soubessem antes, mas agora essa condição os encheu de vergonha. Perceberam que havia algo de vergonhoso neles, e sua primeira reação foi cobrir seus corpos. Segundo Heber Carlos de Campos, essa foi a primeira ação humana na tentativa de se justificar por meio de suas próprias obras. Eles não buscaram imediatamente o perdão de Deus, mas procuraram salvar as aparências.
(2) Logo a seguir, ouvindo os passos de Deus, esconderam-se dele. Para mim é talvez surpreendente essa tentativa de esconder-se do Senhor do Universo. No entanto, o que mudou com o pecado não foi só sua condição diante de Deus, mas também sua percepção de quem era Deus. De um criador amoroso, esse Deus era agora um Juiz que poderia puni-los, era um poder a ser evitado. Uma vez mais, o ser humano mostra que está tentando por seus próprios esforços resolver sua crise existencial.
(3) Quando confrontados por Deus, tanto o homem como a mulher lançam sua culpa sobre outro. Adão complementa essa tentativa de esquivar-se de sua responsabilidade lançando, pelo menos parcialmente, a culpa sobre Deus (“a mulher que me deste...”).
Ao longo de toda a história da humanidade, toda cultura tem tentado se livrar de uma culpa intrínseca de duas maneiras: primeira, ocultando-se, cobrindo-se de alguma forma; segunda, lançando sobre outro sua culpa, ou dizendo que não foram eles, ou mesmo dizendo que a culpa é falsa ou é apenas a opinião de alguns.
O apóstolo Paulo, tendo lidado com vários temas concernentes ao evangelho e a nossa responsabilidade diante dele, precisa agora no livro de Filipenses tratar da questão da tentativa humana de se justificar. Ele introduz o capítulo 3 afirmando mais uma vez o encorajamento da alegria. Logo em seguida, ele confronta seus leitores quanto aos contínuos ataques daqueles judaizantes que queriam reintroduzir na igreja o princípio da lei e do mérito. Nos versos 2 e 3 de Filipenses 3 lemos:
“Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros! Acautelai-vos da falsa circuncisão! Porque nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne.”
Davi deixa claro que os rituais, na verdade, não representam nada para Deus se não forem fruto de um coração quebrantado.
Nesse texto, ele faz uma acusação séria e profunda. A circuncisão sem a graça é apenas mutilação! A palavra traduzida por falsa circuncisão significa exatamente isso. Na verdade, esse princípio não é exclusivo do Novo Testamento. No salmo 51.16-17 lemos:
“Pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não te agradas de holocaustos. Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.”
Davi deixa claro que os rituais, na verdade, não representam nada para Deus se não forem fruto de um coração quebrantado. Esse princípio Paulo deixa ainda mais explícito na passagem de Romanos 2.28-29:
“Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus.”
Após expor o engano da falsa circuncisão, ou da tentativa humana de cobrir seus pecados com rituais sem colocar seu coração nessa busca, Paulo passa a falar do que é a verdadeira circuncisão. Ele apresenta três características dessa nova circuncisão: (1) adoramos pelo Espírito. Nossa adoração não está limitada a rituais, locais, ou sinais externos, mas está centrada em um coração quebrantado, um espírito contrito (Isaías 57.15).
Nossa adoração não está limitada a rituais, locais, ou sinais externos, mas está centrada em um coração quebrantado, um espírito contrito.
(2) Nós nos gloriamos em Cristo e não em qualquer outra verdade. Ainda que seja verdade que mantenhamos uma vida minimamente moral, não é essa nossa glória. Ainda que possamos fazer grandes coisas no Senhor, nossa glória, nossa esperança está em Cristo. E, por fim, (3) não confiamos na carne. Como é fácil para os filhos de Deus começarem a achar que vitórias morais em sua própria vida significam que somos merecedores do amor e da consideração de Deus! Isso se vê com muita evidência no modo como tratamos aqueles que estão presos em seus pecados. Ao invés de tratá-los como pecadores perdoados, com frequência os tratamos como seres inferiores, e nós como superiores morais.
Minha sincera oração por mim e por você é que, ao considerar as duras palavras de Deus nessa passagem, sejamos levados a um espírito de contrição e graça.