Feita de Sucata?

Jamil Abdalla Filho

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Vivemos dias em que o cuidado ambiental se torna mais presente na consciência popular. Projetos de educação ambiental, tanto por iniciativa dos governos quanto por iniciativa da sociedade organizada, ganham cada vez mais espaço na mídia. Levantam-se perguntas, tais como: qual seria a melhor forma de descartar o lixo? Que métodos de reciclagem reaproveitam os materiais descartados com mais produtividade e menos agressividade ambiental? O que fazer com a “sucata”? No caso desta última indagação, as ideias se multiplicam, a saber: obras de arte feitas de sucata, expostas em museus conceituados do mundo inteiro; roupas de grifes famosas, feitas com sucata, exibidas por modelos internacionais durante as “semanas da moda”; projetos de decoração feitos de sucata, assinados por designers e arquitetos de renome; entre outras utilizações que levam as pessoas a se perguntarem: foi “feita de sucata”? Apesar de todo esse esforço para tornar nobre o uso conceitual da sucata, subjaz a verdade de que “sucata é sucata” e “sucatear” continua a ter uma conotação negativa, a exemplo desta expressão: “a indústria brasileira está sucateada”.

Como se pode ver, a sucata já está presente em muitos lugares, ambientes e realidades. Mas, será que ela já se encontra dentro das igrejas? Não, eu não me refiro à presença de materiais provenientes de sucata usados nas dependências físicas de uma igreja, tais como prédios, salas e instalações; refiro-me à “sucata do mundo”!

Há algumas décadas, os países que outrora alavancaram as maiores iniciativas missionárias viram surgir, dentro de seus territórios e em diversas denominações evangélicas, um movimento que clamava por “contextualização”. O que era um movimento se transformou numa corrente teológica, advogada em vários congressos teológicos mundiais e que pode ser denominada de “Teologia da Contextualização”, com reflexos avassaladores na igreja evangélica brasileira (p. ex., um bloco de carnaval especializado em samba “gospel” que canta e dança pelas ruas do Rio de Janeiro, minha cidade natal, com o intuito de “evangelizar” os foliões! Afinal, como propôs o “reverendo” Maquiavel, “os fins justificam os meios”, embora ele nunca tenha escrito isso na sua famosa obra O Príncipe).

Não há dúvida de que o Senhor Jesus, o apóstolo Paulo e outros servos fiéis souberam se situar dentro dos contextos em que estiveram neste mundo, sem comprometer a “fé e a boa consciência” (1Tm 1.19). Entretanto, a proposta anômala dessa contextualização extremada é a de que a Igreja precisa se tornar como o mundo para ganhar o mundo. O pastor John F. MacArthur Jr., em seu livro intitulado Com Vergonha do Evangelho, confronta essa sutileza perversa nos seguintes termos:

O conceito de que a Igreja precisa se tornar como o mundo a fim de ganhar o mundo para Cristo alcançou o evangelicalismo como uma tempestade súbita. Hoje em dia, cada atração mundana tem sua imitação “cristã” [...]. De onde os cristãos tiraram a ideia de que poderiam ganhar o mundo ao imitá-lo? Será que existe qualquer resquício de justificativa bíblica para esse tipo de pensamento? Muitos especialistas em Marketing afirmam que existe e já convenceram uma miríade de pastores. Ironicamente, costumam citar o apóstolo Paulo como alguém que defendeu a adaptação do Evangelho ao gosto do auditório. Um deles escreveu: “Paulo nos legou aquilo que eu considero a perspectiva mais rica do marketing nas comunicações; o princípio que chamaremos de contextualização (1Co 9.19-23). Paulo... estava disposto a moldar sua comunicação de acordo com as necessidades dos ouvintes, para obter os resultados que desejava”. “O primeiro a utilizar o marketing na igreja foi o apóstolo Paulo”, ecoa outro. Afinal de contas, o apóstolo realmente escreveu: “Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1Co 9.22-23). Seria isso uma ordem para nos servirmos do pragmatismo no ministério? Estaria o apóstolo sugerindo que a mensagem do evangelho pode ser ajustada para atrair as pessoas, acomodando-se aos apetites que elas têm por certas diversões e agradando seus vícios prediletos?1

Para o pragmático, a prioridade é saber se determinada prática é vantajosa, sem preocupação se tal prática está ou não de acordo com a Bíblia.

É evidente que o apóstolo Paulo, quando disse: “... tudo faço por causa do evangelho...”, não estava sugerindo que a mensagem do Evangelho e a sã doutrina fossem diluídas para satisfazer os desejos mundanos dos descrentes, muito menos as paixões carnais dos crentes. Contudo, a sucata do pragmatismo acoplada estrategicamente à sucata mercadológica do marketing se apresentam hoje como a solução para salvar a Igreja do Senhor Jesus dessa “crise” que, segundo pensam, pode levá-la à “extinção”. É como se dissessem: “Acuda, Jesus precisa de ajuda!” Que piada de mal gosto com o Único e “... Soberano Senhor...” (At 4.24; 2Pe 2.1; Ap 6.10).

Esse pragmatismo, sistematizado filosoficamente por Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey, se infiltra sutilmente na Igreja com a concepção de que as metodologias que “funcionam” são mais relevantes e viáveis do que as metodologias bíblicas. O pragmatismo tem suas raízes no darwinismo e no humanismo. É essencialmente relativista a ponto de descartar qualquer noção que defina absolutos, tais como: certo e errado; bem e mal; verdade e mentira. O pragmatismo define a verdade como aquilo que é útil, significativo e benéfico. Para o pragmático (tenha ele o título de: pastor, evangelista, teólogo, diretor de organização missionária, professor de faculdade teológica, autor de livros cristãos, editor cristão, músico cristão, fundador de ONG cristã, político cristão, psicólogo cristão, dramaturgo e coreógrafo cristão, etc.) a prioridade é saber se determinada prática é vantajosa (seja lá por qual critério for), sem a mínima preocupação se tal prática está ou não de acordo com os princípios, modelos e exemplos bíblicos. O pragmático começa a desenvolver sua estratégia de “evangelização” com a seguinte pergunta: “Do que os incrédulos gostam?” A partir daí, adapta o conteúdo de sua mensagem e delineia suas iniciativas. Entretanto, dizem eles: “É o que dá resultado!” E continuam a se deliciar com “a igreja cada vez mais cheia de gente vazia!”

Não há como negar que a origem de toda essa sucata é o mundo. A Bíblia categoricamente afirma: “Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno” (1Jo 5.19 – ARA). Nesse texto, a palavra “mundo” (originária do termo grego kosmos) assume sua conotação eticamente má, para se referir à humanidade descrente e alienada de Deus, organizada pelo “príncipe deste mundo” (i.e., o Diabo; o Maligno; cf. Jo 16.11), em oposição a Jesus Cristo, à Sua Palavra e àqueles que pela fé O seguem. O verbo “jazer” traduz o termo grego keimai, o qual, dentre outros significados, expressa a ideia de “deitar”, “estar sepultado” ou “encontrar-se sob o cruel domínio de alguém”, no caso, sob o controle de Satanás, o “Maligno”, o “deus desta era” (2Co 4.3-4). O apóstolo João, na sua primeira epístola, flagrou, já no final do primeiro século d.C., a penetração sorrateira da mentalidade gnóstica na Igreja e, impelido pelo Espírito Santo, combateu o gnosticismo esotérico que promovia uma falsa espiritualidade, centrada no conceito dualista de que o espírito é integralmente bom e a matéria é integralmente má. Esse engodo, mesclado com a Fé Cristã, gerou distorções na convicção de muitos sobre a salvação do ser humano, sobre a Pessoa divino-humana de Jesus Cristo, sobre o procedimento dos crentes, já que a crença gnóstica pregava a necessidade de rigor ascético no trato com o corpo (i.e., a matéria corpórea), mas descompromissava moralmente o indivíduo, sob a justificativa de que o corpo é inerente mau, o que resultou numa espécie de ascetismo pseudocrístão e numa licenciosidade imoralmente mundana. Em 1João 2.15-17, o apóstolo escreve: “Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo – a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens – não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre”. Diante do fato de que “o mundo jaz no Maligno” e de que “tudo o que há no mundo [...] não provém do Pai, mas do mundo”, somente alguém realmente mundano conceberia a ideia de que o mundo, no sentido eticamente mau do termo kosmos, pode oferecer meios e recursos que atraiam os descrentes para o verdadeiro Jesus ou que edifiquem os verdadeiros crentes em Cristo. Por isso, o apóstolo Paulo alerta: “Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo” (Cl 2.8).

Essa mentalidade do “tem de tudo para todos”, geralmente aplicada a vários segmentos do comércio e do entretenimento, já entrou aplaudida pela porta da frente das igrejas. O pastor, pensador e escritor, Aiden Wilson Tozer (1897-1963), num de seus livros, intitulado A Raiz dos Justos, observa, com agudez, o modo pelo qual a Igreja de sua época já tinha se prostrado diante do “grande deus Entretenimento”:

Por séculos a Igreja se manteve solidamente contra toda forma de entretenimento mundano, reconhecendo-o pelo que era – um meio de desperdiçar o tempo, um refúgio contra a perturbadora voz da consciência, um esquema para desviar a atenção da responsabilidade moral. Por isso ela sofreu rotundos abusos por parte dos filhos deste mundo. Mas, ultimamente, ela se cansou dos abusos e parou de lutar. Parece ter decidido que, se ela não consegue vencer o grande deus Entretenimento, pode muito bem juntar suas forças às dele e fazer o uso que puder dos poderes dele. Assim, hoje temos o espantoso espetáculo de milhões de dólares derramados sobre o trabalho profano de providenciar entretenimento terreno para os, assim chamados, filhos do Céu. Em muitos lugares, o entretenimento religioso está eliminando rapidamente as coisas sérias de Deus. Em nossos dias, muitas igrejas têm se transformado em meros teatros pobres, onde “produtores” de quinta categoria mascateiam suas mercadorias falsificadas com total aprovação de líderes evangélicos conservadores, os quais são capazes de citar um texto das Escrituras Sagradas em defesa de sua delinquência. E raramente alguém ousa levantar a voz contra isso.2

A evidência da sucata do mundo nas igrejas testemunha contra a soberania de Deus na salvação do homem e na edificação do crente em Cristo.

A evidência da sucata do mundo nas igrejas testemunha contra a soberania de Deus na salvação do homem e na edificação do crente em Cristo; testemunha contra a glória de Jesus Cristo na “igreja de Deus, que ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28), pois exalta o ser humano e a necessidade humana como o centro de tudo, a fim de justificar a utilização de todo e qualquer meio que produza certa “impressão de bem-estar” (Pv 1.32 – ARA). O Senhor Jesus garantiu que Ele mesmo edificará soberanamente Sua Igreja e lhe dará vitória sobre a morte, ao asseverar: “... e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades [i.e., ‘mundo dos mortos, reino da morte, sepultura ou morte’] não poderão vencê-la” (Mt 16.18).

O autêntico Evangelho de Cristo continua a ser “o poder de Deus para a salvação de todo aquele crê” (Rm 1.16) e a Palavra de Deus, a Bíblia, continua a ser “viva e eficaz” (Hb 4.12), “... útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto [i.e., ‘maduro, completo’] e plenamente preparado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). Para agradar a Cristo, o seu Cabeça, a Igreja não precisa da sucata do pragmatismo, da mercadologia marqueteira, da franchising que “instantaneamente” produz igrejas idênticas em qualquer parte do mundo como se fosse “pipoca de micro-ondas”, do psicologismo terapêutico, do Teísmo Aberto, de uma Teologia da Missão Integral, da espetacularização dos cultos, entre outras “sucatas”.

Sabemos que “ninguém pode colocar outro fundamento além do que já está posto, que é Jesus Cristo” (1Co 3.11), pelo que, um dia, todos nós, crentes em Jesus, prestaremos conta “perante o tribunal [i.e., ‘tribuna’] de Cristo” (2Co 5.10). Portanto, é imprescindível que “cada um veja como edifica” (1Co 3.10 – ARA). — Jamil Abdalla Filho

Notas:

  1. John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho (Editora Fiel, 2010), p. 100-101.
  2. Aiden Wilson Tozer, O Melhor de A. W. Tozer, 3ª ed. (Mundo Cristão, 2007), p. 111.
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