Jesus, o Bom Pastor

Diferentemente dos sinóticos, o evangelho de João não tem parábolas. O evangelho de Lucas inclui 27 parábolas, mais do que qualquer outro. Embora algumas pessoas apontem para a narrativa sobre o bom pastor nesse capítulo como uma exceção em João, a palavra grega usada em 10.6 não é parabolē, mas paroimia, que quer dizer “uma figura de linguagem ou provérbio de estrada”. A NVI a traduz como “comparação”. Embora essa palavra fosse às vezes usada para uma alegoria, ela não era utilizada para parábolas. A linguagem dessa ilustração ou alegoria é deliberadamente indefinida, enquanto uma parábola geralmente tem personagens, narrativa e enredo definidos. Essa comparação em João não contém nenhuma narrativa das pessoas, e não há qualquer ação acontecendo.

A ilustração do pastor (10.1-6)

Jesus traça uma distinção entre ladrões e assaltantes, e o pastor. O roubo é sempre um problema em fazendas de animais, e há dois tipos de bandidos. A palavra kleptēs (“ladrão”) sempre significa aquele que tenta roubar usando um plano, geralmente cuidadosamente calculado. O ladrão está constantemente tentando preparar e executar o crime perfeito. A palavra lēstēs (“assaltante”), por outro lado, faz referência àqueles que usam de violência para conseguir o que querem.

Essa palavra é semelhante ao verbo “saquear”, e identificaria um assaltante comum. O Novo Testamento preserva cuidadosamente essa distinção entre o ladrão e o assaltante.

Esses dois tipos de bandidos tentam entrar no cercado de alguma forma que não envolva usar o portão, que é cuidadosamente guardado. Era comum pastores juntarem seus rebanhos em uma área cercada à noite para sua proteção. Então o pastor dormia do outro lado do portão para proteger suas ovelhas. Por isso, Jesus se chamou de porta (portão) do aprisco. De manhã, os pastores levavam suas ovelhas para fora através do portão e em direção às pastagens. Os bandidos às vezes tentavam roubar ovelhas à noite pulando por cima do cercado ou procurando algum outro meio para entrar. O uso que Jesus faz da palavra rara allachothen (“por outro lugar”) é significativo (10.1). O pastor sempre vem de uma direção conhecida, diferentemente do bandido. Nos capítulos anteriores (3.13; 8.42) e em outros momentos, Jesus usou a palavra “de” para identificar sua origem divina.

Às vezes, os pastores deixavam suas ovelhas no aprisco aos cuidados de um auxiliar conhecido como “porteiro” (10.3). A palavra thurōros vem de duas outras palavras gregas, thura, que significa “porta”, e ōra, que quer dizer “cuidado”. O porteiro do aprisco abria o portão somente para o pastor. Embora não esteja claro como exatamente Jesus queria que essa comparação fosse aplicada, comentaristas sugerem pelo menos duas possíveis identidades para essa pessoa. Alguns dizem que ele é o Espírito Santo, que abre os corações das pessoas para permitir que Cristo entre (1.12). Uma interpretação mais provável à luz do contexto o identifica como João Batista, o precursor de Cristo (veja 10.40-42).

O relacionamento próximo entre um pastor e suas ovelhas é enfatizado quando Jesus observa: “... as ovelhas ouvem a sua voz. Ele chama as suas ovelhas pelo nome...” (10.3). O verbo phoneō (“chama”) enfatiza o aspecto pessoal desse chamado. As ovelhas podem estar misturadas com outros rebanhos no aprisco, mas se juntam ao seu próprio rebanho quando respondem à voz do pastor. Mesmo atualmente não é incomum ouvir de pastores orientais que chamam suas ovelhas pelo nome. Se qualquer outra pessoa além do pastor as chamar, elas não respondem.

A lição da ilustração (10.7-21)

Jesus usou dois aspectos específicos dessa história para ensinar verdades a respeito de si mesmo. Usando a conhecida expressão “eu sou” (grego, egō eimi) duas vezes, ele declara ser tanto a “porta” (10.9) quanto o “pastor” (10.11). Essa lição gerou uma reação dividida na multidão, como cada vez mais vinha acontecendo. Enquanto alguns cautelosamente apoiavam Cristo, outros tinham certeza de que ele estava louco e/ou possuído por demônios.

A porta (10.7-10)

Ao se identificar dessa forma, Jesus estava enfatizando o propósito ou a função de uma porta, o meio através do qual as ovelhas entravam no aprisco. Em termos de aplicação, Cristo é a porta para o aprisco da salvação. Ele enfatiza sua exclusividade como Salvador usando o artigo definido (“a porta”); ele não era apenas mais uma porta, nem estava oferecendo mais um meio de salvação. Ao identificar a salvação exclusivamente com entrar no aprisco através daquela porta (10.9), ele estava negando o sincretismo. A expressão di’ emou (“por mim”) está em uma posição de ênfase para identificar claramente a porta através da qual as pessoas encontram a salvação. Como Robertson observa: “Podem chamar isso de uma intolerância estreita se quiserem, mas é a estreiteza da verdade. Se Jesus é o Filho de Deus enviado à terra para a nossa salvação, ele é o único caminho”.[1]

Jesus usa o verbo sōthēsetai (“salvo”, 10.9), que é a palavra-chave na doutrina bíblica da salvação. Essa palavra inclui a ideia de se estar são e salvo. A segurança das ovelhas é um tema desenvolvido mais adiante nesse discurso. A ordem dos verbos que descrevem o ladrão é significativa. Embora roubar seja seu propósito primário, o ladrão pode matar ou destruir para alcançar seu alvo. Os fariseus estavam preparados para matar a mulher pega no ato de adultério e destruir o cego de nascença, mas seu propósito final era roubar de Cristo a glória que era por direito sua como luz do mundo. A semelhança entre o propósito do ladrão (10.10) e a ação do lobo (10.12) mais uma vez identifica os judeus com Satanás (8.44).

O Pastor (10.11-18)

Os fariseus não faziam parte do plano ordenado por Deus para a liderança de Israel. O Senhor havia estabelecido a santa função dos sacerdotes como líderes espirituais e mestres da nação. Como o assalariado (10.12), os sacerdotes eram os guardiões legítimos das ovelhas na ausência do pastor. Infelizmente, como o assalariado (10.13), os sacerdotes haviam abdicado de sua responsabilidade. A aproximação do lobo é semelhante ao ladrão e ao assaltante, mencionados anteriormente.

Jesus se identifica duas vezes como “o bom pastor” (10.11,14). A palavra kalos (“bom”) usada aqui é um termo que carrega um sentido moral. No grego clássico, essa palavra era usada para descrever algo belo, útil, auspicioso, nobre, saudável, competente e moralmente bom. Não estaria errado usar qualquer um ou todos esses adjetivos para descrever “o bom pastor”. Ao comentar a esse respeito, Vincent observa: “O epíteto kalos, aplicado aqui ao pastor, aponta para a bondade essencial como algo obtido de maneira nobre e que atrai afeição e um respeito admirador”.[2]

Quatro vezes Jesus fala sobre entregar sua vida por suas ovelhas (10.11,15,17,18). Quando o lobo ou bandido chega até o rebanho, seu objetivo é roubar as ovelhas. Normalmente, se ele alcançar seu objetivo sem impedimentos, deixará tudo o mais intocado. O pastor, é claro, não está disposto a deixar o inimigo alcançar seu objetivo sem impedimentos. Ao defender o rebanho, um pastor necessariamente defende suas ovelhas com sua própria vida. Ele sofre a ira do lobo para salvar um cordeiro ou ovelha (veja 1Sm 17.34-35). No caso desse bom pastor, Cristo levou as consequências do pecado sobre si, entregando a sua vida pelas ovelhas. Observe que Cristo usa duas vezes a preposição huper (“pelas”) para descrever a natureza substitutiva de sua morte sacrificial (10.11,15). Esse sacrifício do bom pastor se origina de dois fatos. Primeiro, como Filho de Deus, ele estava livre do pecado e podia, portanto, tornar-se pecado (2Co 5.21) e um sacrifício (10.15,17-18). Segundo, como o pastor das ovelhas, seu amor por elas fez dele um sacrifício voluntário. Jesus manteve controle sobre sua própria vida, inclusive ao permitir que fosse destruída pelo inimigo (10.18).

A reação (10.19-21)

Mais uma vez o ensino de Cristo resultou em desacordo ou divisão entre a multidão (veja 6.52,60,66; 7.12,43; 9.16). Um grupo tentou descartar Jesus, chamando-o de louco ou possuído por um demônio (10.20). Essa não era uma reação nova nem incomum por parte daqueles que se opunham a ele (veja 8.48,52). O outro grupo estava relutante em aceitar essa conclusão sobre Cristo. A lógica do seu ensino não se encaixava com a suposta teoria de loucura. A natureza de seus milagres não parecia ser obra de um demônio. Ainda assim, não há indicação de que aqueles que rejeitaram as explicações enganosas estavam, a essa altura, prontos para acreditar em Jesus Cristo para a salvação.

Notas

  1. Archibald Thomas Robertson, Word Pictures in the New Testament, vol. 5 (Nova York: Harper & Brothers, 1932), p. 177.
  2. Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament, vol. 2 (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 190.
João

Elmer L. Towns é deão emérito da Escola de Religião da Liberty University. Dedica-se ao estudo da Bíblia há mais de cinco décadas, além de palestrar em diversas faculdades e seminários ao redor do mundo.

sumário Revista Chamada Junho 2022

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